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A crise de identidade de Batman em seus 80 anos

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Assim como Superman, que no ano passado completou 80 anos sendo coadjuvante de seus próprios filmes, Batman atingiu essa marca neste mês em meio a uma incomum crise de identidade, que parece ter escancarado boa parte do anacronismo que envolve o personagem atualmente.

O jornalista e escritor Cory Doctorow escreveu, para a edição comemorativa número 1000 da “Detective Comics” um artigo chamado “Occupy Gotham”. Nele argumenta que a concepção de Batman se sustenta na desigualdade social que a figura de Bruce Wayne, milionário herdeiro, ajuda a sedimentar na cidade. Para Batman existir, é preciso que Gotham continue pobre e violenta. Essa condição, por sua vez, está ligado ao fato de existir pessoas como Bruce Wayne que, em vez de trabalhar contra essa desigualdade de forma racional com sua posição privilegiada, prefere gastar todo seu dinheiro em armamentos para punir bandidos. É um tipo de argumento que encontra muito ecos na era Donald Trump, na qual um milionário que teve a manha de se posicionar como presidente dos Estados Unidos, teria todas as ferramentas para tornar o país mais justo. Mas em vez disso, afunda-o ainda mais no nacionalismo exacerbado, ódio, falta de empatia e ganância.

Além disso, há sinais de que a posição de Batman como um dos principais tesouros do grupo Time-Warner em diversas mídias está dando sinais de esgotamento. Não é segredo que Batman seria uma peça-chave na construção do universo expandido da DC nos cinemas. Mas a escolha por Ben Affleck e as decisões criativas de Zack Snyder desagradaram muitos fãs. Em vez disso, a Mulher-Maravilha roubou a cena com mérito. Agora seu próximo filme solo está até o momento sem um ator escolhido em meio a constantes vaivéns na direção e no roteiro.

Correndo por fora na semana passada, também tivemos o primeiro vislumbre em vídeo do filme Coringa produzido por Martin Scorsese e protagonizado por Joaquin Phoenix. A prévia ganhou muitos elogios e chama a atenção o fato de Batman sequer ter dado as caras no trailer, então espera-se que isso se repita no filme também. No meu entender isso até atrapalharia bastante, já que a misteriosa origem do Coringa e uma viagem pela mente do personagem rendem uma história rica o suficiente para sustentar um filme inteiro.

Mas eu queria interromper esse retrospecto recente para tentar entender um pouco do Batman historicamente. ele surgiu ali no final dos anos 30 como herdeiro direto dos vigilantes da literatura pulp e dos quadrinhos pré-Superman. Só que graças ao seu visual e ambientação gótica era o personagem certo no momento certo na aurora dos super-heróis. Por uma grande ironia, Batman fez sucesso cercado de seres muito mais poderosos do que ele. Superman é praticamente um Deus na Terra. A Mulher-Maravilha é o ícone maior das Amazonas gregas. Aquaman, um nobre representante dos atlantes. O Lanterna Verde está entre a maior força tarefa da galáxia.

Muito se diz que o maior superpoder do Batman é o seu dinheiro. Discordo dessa ideia. Para mim, o que faz Batman ser incrível é transformar uma tremenda tragédia familiar a sua maior motivação para ser o combatente perfeito, um exército de um homem só. E além disso, usa essa mesma tragédia como bússola moral para que, em seu cânone, nunca cruze a linha de matar seus inimigos. Sua justiça, via de regra, estando acima da vingança.

Apesar de ser uma história fantástica e que merece com todas as honras estar no panteão das maiores histórias de quadrinhos já feitas, “O Cavaleiro das Trevas” de Frank Miller para mim se tornou um grande desserviço ao personagem nas décadas seguintes. A atmosfera protofascista e retaliadora daquela ambientação criada por Miller faz todo sentido fechada em si mesmo, até porque ela foi pensada para ser uma história do tipo “túnel do tempo”, sem relação com a cronologia tradicional. Mas com o sucesso da história, todo mundo passou a associar os valores deturpados do Batman de Miller como molde para a grande maioria das reinvenções posteriores do personagem.

Um lugar-comum recente sobre o Superman, repetido por muita gente de gabarito, é que é um personagem difícil de escrever, por ser poderoso demais e, logo, sem desafios à altura. E que na outra ponta, Batman é o preferido do panteão da DC entre criadores por ser uma pessoa “comum” motivada pela perda dos pais, contra criminosos quase comuns – descontando-se, é claro, a psicopatia deles. Seria um personagem com os pés no chão, em resumo.

Mas o artigo de Doctorow é interessante por finalmente questionar esse mito. Entendo que Batman é, hoje, ainda um personagem fascinante e com muitas camadas e interpretações possíveis. Mas ficou narrativamente pobre e anacrônico quando reduzido ao estereótipo do ricaço fantasiado que bate em criminosos – e nisso, fica até acima das cabeças do povo que o alienígena Superman em pleno voo. Estes criminosos, aliás, poderiam estar sendo recuperados em uma Gotham com mais verba e boa vontade política –algo que não passaria só por Bruce Wayne, mas que teria sim alguma responsabilidade nisso. Mas no status quo de Batman, bandidos apanham, vão presos, e só retornam para bater e serem batidos ad infinitum.

Não à toa, uma das novidades mais interessantes do cânone Batman nas HQs foi trazida pelo roteirista Tom King em um arco recente que diz que Bruce cogitou o suicídio pouco antes da morte dos pais. Acostumamo-nos a ver Batman como um homem comum de força de vontade e coragem quase além da compreensão, mas essa fragilidade é algo que, em vez de aparentar enfraquecê-lo, torna-o mais humano e, em termos de história, muito mais interessante.

Entre todos os deuses da DC, Batman sobreviveu oito décadas fingindo ser mais um entre eles apesar de sua natureza mortal. Mas se quiser estar por aí mais 80 anos, talvez esteja na hora de deixar o Homem ser um pouco maior que o Morcego, só para variar.


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